terça-feira, 7 de outubro de 2008

Rocha que Vê


Na tela, um fluxo continuo de texturas de cinza em movimento luta contra uma quase indiscernível faixa amarela que tenta invadir o quadro. Manchas verdes de vegetação passam velozes pela imagem. O som de pneus zunindo pela estrada preenche a paisagem. Logo nos primeiros planos de Pachamama, seu mais recente documentário, Eryk Rocha compõe um pequeno resumo imagético de sua temática: mais do que um simples road movie sobre caminhar em busca de uma identidade, este filme nos apresenta o olhar do caminhante sobre os caminhos a serem trilhados ao longo desta busca.

Ainda no início, a voz do cineasta nos explica seu dispositivo: registrar livremente a sua jornada partindo da costa brasileira em direção ao outro lado das Américas, em um percurso cujo objetivo, mais do que atravessar, seria o de romper com as fronteiras entre o Brasil, o Peru e a Bolívia através deste olhar que transita entre nossas identidades compartilhadas. A escolha por este roteiro geográfico não é feita à toa: ao longo desta rota, o planalto amazônico, símbolo da identidade nacional, ascende em direção aos altiplanos andinos, espinha dorsal da identidade sul-americana. Com isso o cineasta evoca, ao longo de seu trajeto, nossa ancestralidade comum: somos todos filhos da mesma terra. Nativos. Indígenas. Latino-americanos. Através de um desfile continuo de rostos, roupas, arquiteturas e sonoridades, nosso olhar brasileiro é projetado daqui para lá, em direção a este possível retorno às origens através deste contato renovado com nossos semelhantes.

Sob este aspecto, os depoimentos dos habitantes de localidades atravessadas pela expedição, embora ajudem a compor e pontuar este panorama geral, em alguns momentos parecem quase dominá-lo, ameaçando romper toda a estrutura narrativa. Ainda que algumas dessas seqüências possuam uma intensidade quase tão densa quanto todo o resto do filme, sua força de realidade se impõe sobre a obra, criando pólos atratores que ameaçam dobrar seu eixo narrativo. Da mesma forma, a presença inevitável de situações tensas na esfera política, que talvez sejam mais facilmente harmonizáveis com essa estrutura na versão para televisão, acabam por pesar em excesso sobre alguns momentos do documentário, fazendo com que parte de sua enorme força se dissipe. Ainda assim, sustentada pela enormidade continental de sua empreitada e pela enérgica particularidade da visão de seu empreendedor, a narrativa resiste.

Ao longo do filme, através de seu olhar onírico e fragmentário, a profusão em mosaico de paisagens em movimento desvenda também um personagem maior: a natureza, aqui filmada de forma bastante peculiar. A chuva contra os vidros do jipe. A vegetação que passa. A nuvem que se deita sobre a floresta em ascensão. Texturas de cores em movimento se unem em continuidades para purificar de nossos olhos a densa carga dramática impingida sobre nós por cada seqüência de depoimentos. Reivindicada e reverenciada como parte de uma ponte clandestina que compõe o grande caminho de unificação da América latina, a natureza aqui se revela como um dos principais personagens do filme, reverberando a fertilidade e a ancestralidade revogadas por seu título: pachamama (do quíchua pacha: mundo, cosmos, tempo e mama: mãe), a deusa-mãe-do-mundo, a terra da qual todos somos filhos, que nos alimenta e protege, deidade máxima da cultura incaica reverenciada ao longo de todos os territórios andinos percorridos pelo filme.

Olhar sobre o olhar, mais do que nos conduzir em uma jornada através de cultura e da paisagem de três países sul-americanos, Pachamama nos conduz através da desimagem vertiginosa da câmera-olho de Eryk Rocha em sua busca continental pelos filhos da mãe-terra. Mais do que servir de instrumento para evidenciar a idéia na cabeça do cineasta, a câmera em sua mão serve como catalisador de seu olhar, tecendo uma ponte entre o olhar daquele que transita e vê o mundo e aquele que, imóvel, vê a tela. Nas palavras de Eryk Rocha, em entrevista sobre Intervalo Clandestino: “O que torna interessante uma história é a forma como você vai abordar aquilo. De início, qualquer tema pode ser interessante. O que torna instigante a arte é o olhar de cada qual, a particularidade desse olhar, a potência, a estranheza de cada olhar". (Pílula Pop)

Inegavelmente, em Pachamama é da particularidade e da estranheza do olhar de Eryk Rocha que surge a vigorosa potência deste desconcertante olhar sobre a identidade comum dos nossos povos latinos.

Pachamama foi exibido dia 06 de outubro de 2008, no Museu Oscar Niemeyer em Curitiba, durante a abertura do III Festival do Paraná de Cinema Brasileiro Latino.

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