segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Diário de Gramado

Por Gilberto Manea.

Chove muito e suave em Gramado, neste mês de Agosto. O frio em brasa de gelo da neblina que desce até o chão, nas altas ruas da cidade, quando a noite cai.

Às vezes, sai um filete de sol a passear e os rostos exibem sorrisos de uma digna alegria. In vino veritas laetitia.

Domingo, dia 09, começou a 37ª edição do Festival de Cinema de Gramado com "Memórias del Subdesarollo" (1968), de Tomáz Gutierrez Alea, exibido na abertura como filme convidado, fora da Mostra Competitiva. Sessão plena, mesmo que lá fora no salão nobre os convidados saboreassem a doce espuma de mais de 300 anos da cervejaria Stela Artois ou o chocolate quente e cremoso da tradição local, entre o barburinho dos câmeras, fotógrafos e jornalistas cercando de luzes os mais famosos (a atriz Dira Paes foi a grande convidada de honra da primeira noite!) era belo ver como este filme-gritado de Titón continua aceso ao tempo presente, feito um sol.

"Memória do Subdesenvolvimemto" foi eleita a película latino-americana mais extraordinária de todos os tempos, numa lista de cem filmes, segundo Pablo Lopéz, vice-diretor de patrimônio do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC), presente na exibição. "Una película que se mueve todavia, que está siempre sendo exibida, en Cuba e en todo mundo".

Muito em breve, a película estará sendo exibida na Cinemateca de Curitiba, na Mostra de Filmes Cubanos que está sendo organizada por Solange Stecz e Dário Pontes Régis, da produtora Vestígio Filmes, responsável pela excelente Mostra de Cartazes Cubanos que aconteceu recentemente no espaço cultural da Caixa, em Curitiba.

Será Gramado homenageando o cinquentenário da revolução cubana e os mesmos 50 anos do ICAIC? Um olhar atento e logo uma possível explicação: Sérgio Sanz e José Carlos Avellar são os digníssimos curadores do Festival de Gramado! A escolha discreta e reta assinala a presença do Comitê de Cineastas Latino-Americano em algum marco secreto da cidade conspirando pela liberdade e a justiça, tanto que, na programação de terça-feira, 10 de Agosto, a sessão estrangeira na mostra competitiva é inaugurada pelo quarto filme da série política que Fernando (Piño) Solanas está fazendo sobre os desastres causados pela política econômica neo-liberal na Argentina: La próxima estación - história do desmonte e reconstrução do sistema ferroviário argentino (2008).

Piño Solanas, eleito deputado federal nas últimas eleições, assume mais uma vez esta posição perigosa, arriscada denúncia contra as grandes corporações estrangeiras que se beneficiam da facilidade com que diversas autoridades políticas e funcionários públicos na Argentina (e, infelizmente em quase toda a América Latina) são suscetíveis de corrupção.

Em auto-mise-en-scène, assumindo a figura de narrador-personagem, Solanas dirige uma câmera movediça que, como num jogo de futebol, vai desenhando parábolas e elipses que realiza para mais de 60 milhões de espectadores em toda Argentina, a descontrução didático-matemática do processo político de implantação econômica neo-liberal que condenou ao desterro, ao êxodo, ao esquecimento e à morte, milhares de trabalhadores, famílias e cidades que retiravam toda a sua subsistência e identidade da existência das ferrovias argentinas. De modo meditativo, apresentando dados estatísticos estarrecedores, Piño Solanas nos emociona ao compor os quadros de imagens fortes com depoimentos de ex-engenheiros que lamentam a morte repentina de companheiros, de mal súbito do coração depois que foram despedidos por aqueles que - conglomerados estrangeiros apoiados por autoridas argentinas - herdaram as concessões de transporte e outros serviços a cada sucessão política. Toneladas e toneladas de ferro e aço cortados em pedaços pelo fogo e vendidas a preço de banana, transformando cidades e povoados, da província de Buenos Aires às fronteiras de gêlo e Chile, em cidades e vilarejos fantasmas.

Raríssima condição de um intelectual que assume como cineasta uma posição política junto ao povo, ainda agora, quando o glamour das famigeradas empresas de telefonia móvel cooptam ou capturam talentos emergentes do audiovisual para prestar serviços de propaganda e marketing.

Ah, se houvesse outra vez uma resistência que nos afirmasse "Esta humanidade dije basta! e empezo a andar!" (Ernesto Che Guevara).