quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Crônica de um primeiro encontro

Cinema Que Pensa - Secção Paraná
Mesa: "Modernismo e Cinema Novo".
Com Juan Posada e Alexei Bueno.

Sob a evidência das câmeras que pretendiam registrar um fato histórico, o Seminário "Cinema Que Pensa" apresentou-se no primeiro encontro como um círculo em torno do vazio. "Quiça, el circulo hielado del infierno, onde Hefesto arrasta sua perna curta". Cinema penso, manco.

Não fosse a ocupação sonora intempestiva de Glauber Rocha e seu cinema imperfeito, na via contrária ao sentido da rua que percorre com o seu “Di”, o tema geral proposto “As Américas – As forças criativas dos povos americanos” ou a ordem do dia “Modernismo e Cinema Novo”, não teria sequer faiscado ao microfone (que teimava em não funcionar, como todo o resto, a iluminação do auditório, a arquitetura do Museu Oscar Niemayer, a araucária transformada num olho de Ciclope cego, sob o espelho d`água em que se viu Narciso).

Sejamos didáticos. Seminário é uma palavra que coloca em circulação a idéia de sêmem, semente, semeadura, fecundação, cultura – no sentido de plantio. Força seminal das palavras a fecundar o terreno fértil à sombra das araucárias em flor. "Kury` itiba".

Deveria ter sido assim. E foi apenas, mais uma vez, o logus spermaticus da origem européia. Fomos ali para reconhecer algumas forças criativas dos povos americanos e só nos foi dado “o busto glorioso de Américo Vespúcio”. Nos ainda não saímos do velho continente. Continuamos talvez, ainda numa terra estrangeira, iberibárbaros, desterrados. Quando não somos apenas os papagaios do ventríloquo.

Uma preguiça congênita parecia dominar o pensamento do filósofo e do poeta. A pauta geral esvaneceu-se numa tentativa superficial de crítica ao modernismo da Semana de 22. Havia pressa em sair dali to lazyness, beer and yawn.

Com a perda de foco do propósito que nos re-unia ali, o filósofo talvez tenha se esquecido da velha lição de Platão: para que o círculo do pensamento se fizesse, na articulação cinema e filosofia, deveria ter-nos oferecido “o banquete”.

O poeta Alexei Bueno, de forma histriônica apresentou-se como residente de um palácio de cristal, intocável na sua condição de poeta e cantor do Sublime. Alguém recordaria as meias de Kant ou seus passeios ao pôr-do-sol? Traços de humanidade não devem nunca serem ultrapassados pelo Sublime, sob o risco deste perder sua força.

Depois, esqueceu-se que nós, já havíamos atravessado “as fronteiras” junto da pupila expandida de Eryk Rocha, em Pachamama.

Uma revisão crítica da Semana de 22 faz-se realmente necessária, mas é preciso não esquecer as reverberações com que se re-inaugurou na cultura brasileira, a Antropofagia de Oswald de Andrade. Lá atrás, com os parangolés de Hélio Oiticica no Museu de Arte Moderna do Rio, com as gargantas solares da Tropicália, ou ainda, na fusão de Oswald e Glauber na montagem de “O Rei da Vela” de José Celso Martinez Corrêa.

Ou aquilo que ecoa na música e no cinema dos cérebros eletrônicos das periferias do Recife.

Sem esquecer a escolha e predileção de Glauber Rocha, entre os modernistas, pelo músico Heitor Villa-Lobos, aliás, presente na trilha de "Di".

No entanto, ainda faz-se necessário reivindicar a força nutritiva do banquete antropofágico sob o risco de sermos autofágicos como cães que comem as pulgas na própria cauda. Temos que reivindicar estas forças colocando em causa o sentido de pertencimento. A antropafagia como elo que nos conduz à ancestralidade aborígena. A antropofagia nos une, diz Oswald. Tupy or not tupy?

Como nos diz Paulo Emílio Salles Gomes: "somos a dialética rarefeita entre o não ser e ser o outro".

Alexei Bueno tem razão em criticar o modernismo e suas mazelas oficialescas, mas a cena de “O Cinema Que Pensa” implicava em mobilizar as forças criativas dos povos americanos e não o desvio para a desmobilização do modernismo brasileiro.

A presença quase acidental, improvisada ou antecipada de André Queiroz, foi providencial para que bebêssemos o bom vinho do pensamento francês contemporâneo e recordássemos o sempi-terno Walter Benjamin, ainda que quase fora de foco do programa "cinema que pensa as forças criativas das Américas", enunciado desde a exibição do "Di Cavalcanti", de Glauber, sob o signo do quase-silêncio de filósofos e poetas.

Que a reverberação sonora, musical, empreenda ritornelos barulhentos para o dia seguinte.


* * *

A propósito do "Di".

Deleuze e Guattari recolocam em circulação a figura do amigo como essencial para que aconteça a filosofia. Vida, paixão e morte de Di Cavalcanti é a performance ritual que o cineasta Glauber Rocha executa em homenagem ao seu amigo pintor, onde um cinepoema ocupa um lugar de carta-testamento, tensionando as fronteiras do cinema e da arte na linha de horizonte da morte que é vida - vida sonora, barulho, tumulto, escândalo.

Aqui, Glauber Rocha encontra Oswald de Andrade no carnaval de Di Cavalcanti e depõe - como uma pausa - suas críticas aos modernistas, à política do café com leite de São Paulo. É também Manuel Bandeira e o aceno à Irene que foi pro céu. É Mário de Andrade à frente da pesquisa do folclore musical brasileiro, raízes ibéricas, judaicas sem paraíso, sonoridades da Casa Grande e da Senzala num só ritornelo. Matrizes arcaicas, nos disse Queiroz, com Walter Benjamin.

Está em causa, a Antropofagia. Só a antropofagia nos une. Matriarcado de Pindorama. Inal Mama. Mama África.

A escandalosa narração de futebol se sobrepondo às imagens do velório e do caixão, às pinturas das mulatas e, surgindo depois das rosas vermelhas do caixão, Antônio Pitanga que simula com gestos, o samba, o batuque, o pandeiro, porta-estandarte do invisível, vestido de corpo-sorriso, dorso nu diante das obras do pintor, imagem em correspondência com uma imagem do futuro, o olhar e o sorriso de um menino em Pachamama, de Eryk Rocha.

Esta ressonância é condição cine qua non, de eventos que se sobrepõem no tempo articulados neste ciclo Cinema Que Pensa.

A destilaria Glauber produziu a melhor e única cachaça possível para a despedida do amigo morto, ali, num limite onde o cinema ultrapassa a racionalidade iluminista, isto é, a filosofia e todas as ciências humanas enquanto saber organizado em caixinhas etiquetadas, dando corpo à forças míticas da cultura brasileira afroameríndia, inclusive deixando ser cinema para ser rito.

Está em signo "beber o morto". Cinema Que Pensa.


Por Gilberto Manea.

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